21 de nov. de 2014

Releitura de Autorretrato com Macaco – Frida Kahlo

frida-Kahlo
Aceitei fazer esse trabalho de patchwork instigada por um convite e uma provocação. O convite era criar alguma coisa com referência a Frida e a provocação: por que não? Aceita a aposta me ponho a trabalho em torno de Frida e vou procurando, escolhendo, juntando objetos para iniciar o trabalho, resíduos materiais: pedaços de tecidos, de algodão, de seda, linhas, botões, cordões, transitando entre o possível, com as técnicas de patchwork e habilidades manuais e o contingente, o material que escolho e do qual me aproprio ao acaso. Objetos comuns como um pedaço de malha preta e de cetim verde torna-se outra coisa, estranha ao seu uso, torna-se uma trança. Também entre o possível e o contingente é o trabalho da psicanálise, com o impossível sempre a rondar, como a acossar também o trabalho de criação.
Cria-se com a técnica a serviço do inconsciente, ou do desejo que é seu outro nome. O ato de criação é uma ruptura com a inércia, com o estabelecido e faz surgir algo de novo. E o artesão trabalha concentrado e ao mesmo tempo esvaziado de pensamento e atento às possibilidades de conjugar os objetos quase que com uma atenção flutuante que é própria do trabalho analítico.
Quanto ao panô sobre Frida há de princípio uma escolha de com qual obra trabalhar. Nos quadros de Frida muitos dos traumas pelos quais passou estão à mostra. Antes dela a arte do ocidente jamais havia usado imagens de nascimento ou aborto, órgãos internos à vista como comenta Sarah Lowe no Diário de Frida kahlo.
O papel de paciente era familiar a Frida, atingida por vários problemas de saúde, a começar por uma poliomielite aos 7 anos de idade, um grave acidente aos 18, tendo sofrido várias intervenções cirúrgicas ao longo de sua vida e ficando por vários períodos imobilizada em uma cama.
Seus autorretratos – ela pintou cerca de 55, um terço de sua produção – são pinturas provocativas e agressivamente audaciosas. Carlos Fuentes escreve na introdução do diário de Frida que o corpo é o templo da alma e o rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, como ocorreu com ela, a alma não tem outro santuário a não ser o rosto.
Minha atenção se volta para os autorretratos e a presença constante de animais. Escolho “Autorretrato com macaco”, um quadro de 1938. Foi, por sinal em 38, a decisiva mudança de Frida de artista amadora para pintora profissional quando vendeu seu primeiro quadro para um astro de cinema e expôs 25 obras na galeria Julien Levy, em Nova York.
No autorretrato escolhido, há luminosidade e em minha apropriação dele coloco opacidade. Há um ponto em torno do qual o trabalho começa: o rosto. O rosto humano é um ponto de atração do olhar por excelência. E no rosto de Frida ressalta a sobrancelha. É como sua marca registrada, a sobrancelha e depois o jeito de colocar o cabelo, as tranças realçadas. E nesse quadro há a presença do macaco que funciona como um ponto de humor, um ponto de fuga, um umbigo do quadro.
Marcel Duchamp, artista que revolucionou a arte na segunda metade do século 20 com o que viria a se chamar ready-made, proferiu uma conferência em 1957 (The criative art) onde apresentou que o ato do artista não é executado sozinho. Fazendo um parêntese, Duchamp foi o autor da famosa obra que tem fixada uma roda de bicicleta sobre um banco de cozinha e ele disse a propósito disso que qualquer objeto pode tornar-se uma obra de arte, basta um gesto do artista. Um objeto cotidiano torna-se de repente, por um simples gesto, algo estranho, um familiar-estranho.
Voltando à sua conferência, Duchamp disse que é necessário a presença do outro que se coloca diante da obra, o olhador, o contemplador que decifra e interpreta as qualidades intrínsecas da obra e dessa forma acrescenta sua contribuição ao ato criador. Duchamp disse ainda que o próprio ato criador é esburacado; há uma falha, uma inabilidade necessária ao artista em expressar sua intenção. E nesse descompasso entre o que se queria realizar e o que se produziu reside a “condição artística” contida na obra.
Abordando o trabalho analítico, Lacan disse que o analista, é por não pensar que ele opera, mas ele sabe que o faz, ele está advertido disso. Quanto a Frida, ela disse: “pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”. Uma fala que mostra o sujeito às voltas com o que lhe instiga e com um equívoco, é porque não sabe que seu inconsciente opera se expressando em sua arte.
Sua obra procura tecer uma continuidade de sua vida e produz uma descontinuidade que se reproduz naquele que a olha. A obra de Frida ressoa em mim como dada a sobressaltos. Em um instante parece que se abre uma fenda, e algo que não deveria estar ali surge e o fio que amarra simbólico, tempo e a própria vida se rompe e se mistura. Resisto e pronto, algo se recompõe e posso a partir disso explorar suas ressonâncias em meus próprios questionamentos e me por também a trabalho.
Helena Maria Galvão Albino

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